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DISCURSO DE POSSE DO EXMO. SR. DESEMBARGADOR JOSÉ CARLOS SCHMIDT MURTA RIBEIRO - BIÊNIO 2007/2008

 

"O que mais me preocupa não é nem o grito dos violentos, dos corruptos, dos desonestos, dos sem caráter, dos sem ética. O que mais preocupa é o silêncio dos bons (Martin Luther King).

Excelentíssimo Senhor Governador do Estado, Sérgio Cabral Filho, que muito nos honra com a sua presença e que pretendemos parceiro no servir ao povo deste nosso Estado do Rio de Janeiro.

Excelentíssimo Presidente Sergio Cavalieri Filho, a quem venho agora suceder e que nos legou uma gestão competente e pertinaz.

Excelentíssimos Ministros do Superior Tribunal de Justiça, Carlos Alberto Direito, Hamilton Carvalhido e Luiz Fux, exemplos maiores de magistrados e cultores do Direito, amigos de toda uma vida.

Excelentíssimo Senhor Almirante de Esquadra Saraiva Ribeiro, que ilustra esta solenidade de posse, a qual, na linguagem militar, corresponde à assunção de funções e comandos militares que têm sido exercidos com galhardia e competência por Vossa Excelência.

Demais Comandantes das Forças também aqui presentes.

Colegas Magistrados, Senhores Membros do Ministério Público, da Defensoria Pública, das Procuradorias Estadual e Municipais, Ilustres Advogados, Senhores Prefeitos, aqui em grande número, Servidores desta Casa, meus concidadãos. Amigos todos,

Hoje, 1º de fevereiro de 2007, será sem dúvida um dia inolvidável em nossas vidas, minha e de meus eminentes pares - Desembargador Luiz Zveiter, Corregedor-Geral da Justiça; Desembargador Sylvio Capanema de Souza, 1º Vice-Presidente; Desembargador Celso Muniz Guedes, 2º Vice-Presidente; Desembargadora Mariana Pereira Nunes Feteira Gonçalves, 3ª Vice-Presidente -, que comigo assumem os mais altos e honrosos cargos na Administração Superior do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, e por assim ser, que minhas primeiras palavras sejam de agradecimento ao Senhor Nosso Deus, Construtor do Universo e Condutor de nossa caminhada até aqui, de cuja palavra extraio o ensinamento do Salmo nº 9, Versículos 8-10, que servirá de norte à nossa gestão participativa:

Deus Governa os povos com retidão.

Eis que Javé sentou-se para sempre, firmou o seu trono sólido para o julgamento. Ele julga o mundo com justiça e governa os povos com retidão. Que Javé seja fortaleza para os oprimidos, fortaleza nos tempos de angústia.

Agradecimento que estendo aos estimados colegas do Tribunal Pleno, que nos escolheram para dirigir o Poder Judiciário Fluminense no biênio 2007/2008, em memorável eleição, onde tivemos a oportunidade de exercitar plenamente a democracia e celebrar o Estado Democrático de Direito, a cuja defesa nos comprometemos em nosso juramento de posse.

Em seu excelente livro Era dos Extremos ¿ o breve século XX, Eric Hobsbawn, um dos grandes historiadores de nosso tempo, resume impressões sobre o último século, traçadas por personalidades que nele viveram, destacando a síntese do músico Yehudi Menuhin: Se eu tivesse de resumir o século XX, diria que despertou as maiores esperanças já concebidas pela humanidade e destruiu todas as ilusões e ideais. Tantas que foram as hecatombes, tais como: as grandes guerras mundiais, o Holocausto, o indesejável desentendimento entre os povos, o 11 de setembro de 2001, a se traduzirem em desesperança e diminuição dos ideais de todos.

De sorte que, no limiar deste novo século e milênio, também o veremos marcado por vertiginosas transformações sociais e pelo espantoso avanço da tecnologia, e, de igual forma, pela persistência de problemas como a miséria de milhões de pessoas, do desemprego ou sub-emprego e do desrespeito aos direitos humanos fundamentais. Daí porque a Democracia, as Constituições e o próprio Direito também viverão constantes mutações, exigindo do Poder Judiciário o acompanhamento permanente de todas as circunstâncias que envolvem sua atuação. Então, torna-se indispensável uma contínua reciclagem, que não se limita aos aspectos puramente operacionais, mas nos veremos buscando a vivência de uma nova cultura em face da sociedade contemporânea.

Vivemos época em que as mutações sociais se fazem rapidamente, a ponto do eminente Professor Tarcísio Meireles Padilha, emérito filósofo e membro da Academia Brasileira de Letras, em seu livro Brasil em Questão, nos haver alertado para esse fenômeno social, no qual a desusada aceleração de ritmo das transformações sociais torna o homem de hoje em contemporâneo do futuro. Em nossa área específica do conhecimento, o Direito, mais ainda nos preocupamos com a velocidade das mutações sociais porque as reformas empreendidas ¿ que, quando reformam, o fazem apenas pontualmente ¿ acabam por tornar cada vez mais complexo nosso sistema legal.  Esse fenômeno social de mutações rápidas ¿ que no passado levava o tempo de uma geração, hoje se faz em poucos anos ¿ mostra a dificuldade da missão do intérprete, do exegeta, que, em face da edição de normas casuísticas, justamente prima pela ausência do seu elemento de interpretação mais importante: o sistemático aumenta e muito, nossa responsabilidade para com os jurisdicionados. Daí porque, a cada dia, se faz mais e mais necessária a intervenção do Poder Judiciário para a construção da paz social ¿ seu fim último ¿, dirimindo os conflitos de interesses, com eficácia e eficiência.

A Profª. Carmen Lúcia Antunes Rocha, recentemente investida, com justificados méritos por sua militância e combatividade como Advogada e Mestra de Direito Constitucional, na condição de Ministra do Supremo Tribunal Federal, observa, em trabalho intitulado A Reforma do Poder Judiciário, verbis:

E é da observância integral e dinâmica (atualizadora) do sistema constitucional que nasce a convivência democrática segundo o Direito. O Estado Democrático de Direito depende, então, da constitucionalização legítima do projeto político da sociedade configurada sob o modelo estatal; da atualização permanente do sistema constitucional pela jurisprudência criadora, recriadora e criativa do Direito que impeça o seu esclerosamento e a sua defasagem das necessidades sócio-políticas, ou seja, depende do Direito vivo e em permanente movimento para ter sintonia com a sociedade; com a eficiência do sistema jurídico aplicado para que a democracia não se transforme em anarquia, menos ainda em demagogia. Não se quer o Direito eficaz, mas carente de povo, dele afastado, pois tanto desaguaria em práticas políticas ilegítimas, conquanto legais; nem se aspira ao Estado sem Direito, pois a democracia não conduziria à segurança, em cuja crença se baseia o povo para renunciar exercício absoluto de suas liberdades (...).

Direito produz-se na sociedade e formaliza-se no Estado; mas reproduz-se, democraticamente e engajadamente, num movimento que vai da sociedade ao Estado e de volta à sociedade (...).

Como a multiplicação frutificadora do Direito tem que se compor com a segurança jurídica, o Poder Judiciário passa a desempenhar um papel inédito na conformação histórica das instituições estatais. Ao lado da função tradicional de solução de conflitos particulares e dos litígios havidos entre cidadãos e entidades públicas (mas sempre unipessoais ou litisconsorciais), no desempenho da qual o juiz é ¿escravo da lei' e seu mero aplicador, vê-se impor, neste final de século, uma função jurisdicional voltada à prevenção de litígios, à solução de conflitos plurais e não mais meramente singulares e à aplicação do Direito recomposto e recriado, diuturnamente, numa gestação permanente da sociedade. A função social do juiz e os fins sociais do Direito libertam a lei de seu texto fincado no momento de sua feitura ou de sua promulgação. A democratização do Direito passa pela efervescência judicial e pela ampliação funcional do Judiciário.

A jurisdição achega-se à natureza aberta da Constituição atualmente concebida em ambiência democrática (...).

A jurisdição passa a ser muito mais importante na vida de cada um e de todos em razão de sua condição única de baluarte no qual se podem sustentar as liberdades públicas. A Constituição, pilar sustentador destas mesmas liberdades, faz-se viva na jurisdição excelentemente prestada e universalmente assegurada. Porém, mais que uma Constituição-Cidadã, há que se obter um Judiciário do cidadão. Sem um não há outro (...).

A jurisdição, diversamente, é uma via de agitação permanente da cidadania. É por ela que o Direito faz-se vivo e insuperável pela atuação de quantos pretendam transgredi-lo. É pela provocação da jurisdição que o cidadão faz com que o Direito seja universalmente acatado e igualmente imposto a todos. É pela jurisdição que direitos políticos ¿ como aqueles que se referem ao governo honesto, às políticas públicas voltadas à concretização de princípios constitucionalmente definidos e objetivos juridicamente estabelecidos são honrados pelos que estejam no exercício de funções públicas ¿ que se refreia o Poder Público nas estritas balizas do Direito (...).

A jurisdição cumpre-se, democraticamente, pelo desempenho de três etapas de um percurso estatal que vai do acesso assegurado ao cidadão, ao órgão judicial competente, passa pela eficiência da prestação e aperfeiçoa-se na eficácia da decisão proferida no caso apresentado. (Revista de Informação Legislativa do Senado Federal, n.º 137, janeiro/março 1998).

A Reforma do Poder Judiciário, promovida pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004, fixou dois princípios fundamentais para toda e qualquer administração judiciária. O primeiro, inserido entre os direitos subjetivos individuais, consta do inciso  LXXVIII que se acresceu ao rol do art. 5º - a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação. O segundo, advindo das características que conformam o perfil do Poder Judiciário, encontra-se no § 2º que se aditou ao art. 98 ¿ As custas e emolumentos serão destinados exclusivamente ao custeio dos serviços afetos às atividades específicas da Justiça.

A combinação desses dois princípios - o da razoável duração do processo e o da vinculação estrita dos meios à entrega da prestação jurisdicional - baliza os planos que devem elaborar, os programas e projetos que devem executar e as atitudes que devem manter os incumbidos da gestão do Poder Judiciário, a partir da Emenda Constitucional nº 45/2004.

Tal combinação de princípios significa que as atividades-meio da administração judiciária devem ser vistas como a retaguarda que se coloca a serviço da principal finalidade que lhes legitima o custo, que é a de resolver, em tempo razoável, os conflitos que as partes submetam à mediação dos juízes.

A esse propósito, encontra lugar de relevo o pensamento de Luigi Ferrajoli, festejado Mestre da Universidade de Camerino, Itália, sobre o papel do juiz e a legitimação democrática da sua independência, in verbis:

A sujeição do juiz à lei já não é de fato, como no velho paradigma juspositivista, sujeição à letra da lei, qualquer que seja o seu significado, mas sim sujeição à lei somente enquanto válida, ou seja, coerente com a Constituição (...).

Precisamente porque os direitos fundamentais em que se baseia a democracia substancial são garantidos incondicionalmente a todos e a cada um, mesmo contra a maioria, eles constituem o fundamento, bem mais do que o velho dogma juspositivista da sujeição à lei, da independência do Poder Judiciário, que para a sua garantia está especificamente vocacionado.

(...). Visto que os direitos fundamentais são de cada um e de todos, a sua garantia exige um juiz terceiro e independente, subtraído a qualquer vínculo com os poderes assentes na maioria, e em condições de poder censurar, como inválidos ou como ilícitos, os atos praticados no exercício desses poderes. É este o sentido da frase ¿há tribunais em Berlim': tem de haver um juiz independente que possa intervir para reparar as injustiças sofridas, para tutelar o indivíduo mesmo quando a maioria e até a totalidade dos outros se coligam contra ele, para absolver no caso de falta de provas, mesmo quando a opinião pública exige a condenação, ou para condenar, havendo prova, quando a mesma opinião é favorável à absolvição. Esta legitimação não tem nada a ver com a da democracia política, ligada à representação, pois não deriva da vontade da maioria. O seu fundamento é unicamente a intangibilidade dos direitos fundamentais. E todavia é uma legitimação democrática, que os juízes recebem da sua função de garantia dos direitos fundamentais, sobre os quais se baseia aquilo a que chamamos ¿democracia substancial'.

Compreende-se que uma ciência jurídica assim entendida confina e entrelaça-se com a política do Direito; melhor, com a luta pelo Direito e pelos direitos levados a sério. Pode também dar-se o caso de uma tal perspectiva basear-se numa excessiva confiança no papel garantista do Direito. Mas eu penso que, independentemente do nosso otimismo ou pessimismo, para a crise do Direito não há outra resposta senão o próprio Direito; e que não existem, para a razão jurídica, alternativas possíveis. Ela é a única via para responder à complexidade social e para salvar, com o futuro do Direito, também o futuro da democracia. (O Direito como sistema de garantias, in O novo emDireito e Política, Livraria do Advogado Editora, José Alcebíades de Oliveira Jr. (org.), diversos autores, Porto Alegre, 1997, p. 100/102 e 109, trechos).

Surgem, daí, em tese, dois desafios para administrar o Judiciário de acordo com esse norte fundamental. O primeiro concerne à delimitação da função jurisdicional, em novo contorno constitucional, republicano e democrático. O segundo diz respeito aos instrumentos da ciência da administração que devam e possam ser manejados para que o sistema judiciário seja capaz de apoiar o exercício da função jurisdicional em tempo razoável, a cada caso concreto. Sob a perspectiva administrativa, ambos os desafios confrontam o Poder Judiciário com a transição do chamado Estado patrimonialista, apegado ao excesso de formas e de escasso compromisso com a cidadania, para o que se tem convencionado denominar de gestão de resultados, que quer o Estado comprometido com melhorias contínuas e aptas para atender, com qualidade, às expectativas dos usuários de seus serviços.

A inércia que caracteriza a tutela jurisdicional, que só se move mediante provocação dos interessados, já indica os limites de sua intervenção, mas, mesmo ela cede, modernamente, a um ativismo judicial exigido por situações-limite que não podem, nem devem, aguardar a instauração formal de um processo, como, por exemplo, ocorre com a jurisdição da infância e da adolescência, ou, quando já exista processo, podem ser exemplificadas no poder cautelar geral.

Merecem lembrança algumas experiências já existentes em nosso Estado, no campo da atividade pré-processual dos juízes, com vistas à obtenção, mediante a conciliação por eles conduzida, de acordos que evitem a multiplicação geométrica das demandas, trazendo, como efeito dominó, a necessidade de um crescimento da estrutura judiciária muitas vezes incondizente com os demais reclamos sociais (educação, saúde, habitação, segurança pública, etc). Com efeito, é salutar o desafogamento da estrutura judicial como resultante dessa atividade conciliatória, por isso mesmo justificando o estímulo e a alocação de recursos pelo Poder Judiciário. Lembre-se da atuação bem-sucedida do conhecido "Expressinho", designação afetuosa de uma agência instalada pelo Judiciário e conduzida por juízes para auto-composição de litígios entre os consumidores e concessionárias de serviço público. Também a Justiça Itinerante deve ser lembrada, ao proporcionar a prestação de serviços judiciais e de conciliação a comunidades distantes dos fóruns, especialmente aquelas mais carentes de recursos econômicos e de informação sobre o acesso à justiça. Por isto que projetos dessa natureza devem estar submetidos a periódicas avaliações de sua taxa de custo-benefício, além de seu planejamento e sua execução afastarem todo laivo de tentações populistas. Outro exemplo desse ativismo judicial foi a realização do "Dia de Conciliação Nacional", projeto da eminente presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministra Ellen Gracie.

Trata-se de uma situação tão nova quanto instigante para a atividade da Justiça como elemento essencial de sementeira da cidadania, não passando desapercebida à sensibilidade e talento da Profª. Ada Pellegrini Grinover, que assim nos ensina:

11. Os procedimentos conciliativos extrajudiciais, que nos interessa examinar agora, são os anteriores à instauração do processo, podendo servir como instrumento para evitá-lo. E neles a conciliação surge como alternativa ao processo (..).

12. O conjunto dos modernos estudos sobre a conciliação prévia extrajudicial evidencia claramente sua função, que se desdobra em diversos aspectos, dentre os quais os mais relevantes são: a) a recuperação de controvérsias, que permaneceriam sem solução na sociedade contemporânea, sobretudo no campo da denominada ¿justiça menor', em matéria de tutela do consumidor, de acidentes de trânsito, de questões de vizinhança e de família, das ligadas ao crédito etc.; b) a racionalização da distribuição da justiça, com a conseqüente desobstrução dos tribunais, pela atribuição da solução de certas controvérsias a instrumentos de mediação, ainda que facultativos; c) o reativar-se de formas de participação do corpo social na administração da justiça; d) a mais adequada informação do cidadão sobre os próprios direitos e sua orientação jurídica, elementos políticos de particular importância na conscientização das pessoas carentes. Tudo, aliado à convicção de que o método contencioso de solução das controvérsias não é o mais apropriado para certos tipos de conflitos, indicando a necessidade de atentar para os problemas sociais que estão à base da litigiosidade, mais do que aos meros sintomas que revelam a existência desses problemas. É isso que vem finalmente indicar aquela que talvez seja a função primordial da conciliação: a pacificação social. (Deformalização do processo e deformalização dascontrovérsias, Relatório brasileiro para o tema "Alternativas informais para procedimentos formais", do VIII Congresso Internacional de Direito Processual, Utrecht, agosto de 1987, in Revista de Informação Legislativa, Senado Federal, ano 25, n.º 97, janeiro/março 1988).

Não podemos, pois, deixar que tal iniciativa, em boa hora trazida pela Eminente Presidente do Supremo Tribunal Federal, fique só em um "mutirão", mas que frutifique e se torne permanente.

Quanto aos instrumentos da ciência da administração que possam e devam ser mobilizados para gerir o sistema judiciário, é preciso reconhecer, em primeiro lugar, o quanto tal sistema é complexo. Para produzir o resultado judicial com qualidade - o conflito bem resolvido, em tempo hábil -, em milhares ou milhões de casos concretos (as estatísticas do Judiciário fluminense apontam que são distribuídos, a cada ano, desde 2004, mais de um milhão de novas ações, veiculando as mais variadas pretensões), a administração judiciária deve aprender a aplicar as mais modernas técnicas de gestão, todavia adaptando-as às peculiaridades desse singular sistema, o que se tem mostrado repto dos mais instigantes.

Em segundo lugar, é necessário entender que administrar não é desembrulhar um pacote de técnicas e truques, ou de ferramentas analíticas. A evolução da história da administração ensina que há um conjunto de princípios essenciais, norteadores de toda gestão. Sintetizo-os a seguir em cinco pontos, de modo a enunciar aqueles que orientarão nosso biênio à frente do Judiciário estadual, sempre sob a ótica da plataforma de atuação apresentada quando do processo eleitoral: Ética ¿ Competência ¿ Participação ¿ Transparência e Efetividade.

O primeiro ponto refere-se às pessoas. Toda administração delas depende e para elas se destina numa visão antropocêntrica do fenômeno social. O gestor deve ser hábil o bastante para ajudar pessoas a se tornarem capazes de apresentar um desempenho conjunto, de fazer com que suas características pessoais mais fortes se manifestem e se desenvolvam em favor da organização, e suas fraquezas ou dificuldades maiores se tornem irrelevantes (para alcançar os resultados necessários). Em síntese, a pessoa certa, no lugar certo, na hora certa. Magistrados e servidores prestigiados, apoiados por eficientes e eficazes serviços de treinamento e atualização funcional, contando com cobertura logística à realização da missão do Judiciário, constituem a mais essencial diretriz da gestão que ora se inicia.

O segundo ponto reside no fato de que toda administração trata com a integração de pessoas em uma missão determinada, cuja consecução pressupõe valores que compartilham. Quando se fala de missão e de valores se está a falar de cultura, em seu sentido sócio-antropológico. Um dos principais desafios enfrentados por um gestor é o de encontrar e identificar os aspectos da tradição, da cultura e da história que influem, por vezes até condicionando, a compreensão e a disposição das pessoas dentro de uma organização, pública ou privada. O Poder Judiciário tem história, tradição e cultura próprias, que devem ser sublinhadas e respeitadas. As técnicas e os métodos de gestão devem com elas se harmonizar.

Gerir um sistema com a vocação de resolver conflitos humanos, segundo um ordenamento principiológico e normativo, não é o mesmo que administrar uma fábrica ou um estabelecimento comercial.

Feliz será o resultado que logre plasmar profissionais que primem por certos atributos, que são os próprios da magistratura porque decorrem da combinação daqueles hábitos na dose certa, que todo gestor judiciário deve prezar e enaltecer: invariável respeito à dignidade das pessoas ¿ quaisquer pessoas, ricas ou pobres, poderosas ou comuns do povo ¿; respeito ao seu direito à divergência, ainda que decorrente de ignorância, de precária apreensão da realidade ou de idiossincrasias; prudência para ouvir e considerar; serenidade para sopesar; maturidade para discutir, em sessões abertas, as mais provocantes e eventualmente polêmicas questões, sem perda do equilíbrio e da objetividade na busca da melhor solução, nas circunstâncias de cada situação; firmeza para, afinal, decidir.

Esses os motivos que me levarão a sempre partilhar com os colegas magistrados, sobretudo por meio dos órgãos colegiados do Tribunal e de sua representação associativa, as decisões que necessitem do intercâmbio de ponderações e aconselhamentos, ou que, por sua dimensão e índole estratégica, possam comprometer os meios administrativos em face da principal missão legítima do Poder Judiciário, que é a de resolver os conflitos de interesses em tempo razoável, em harmonia com os princípios e normas que dimanam da Constituição e inspiram as leis.

Este Tribunal, graças às inovações introduzidas nos últimos anos, atingiu um grau de excelência por todos reconhecido. Hoje, existe o consenso de que estamos desenvolvendo, no Estado do Rio de Janeiro, o paradigma do Judiciário ágil e eficiente de que o país precisa para levar o ideal de justiça a todos os cidadãos. Mas esse reconhecimento se, de um lado, é motivo de orgulho, por outro representa um desafio ao ideal das melhorias contínuas. É mister reconhecermos que, embora muito já tenha sido feito quanto a instalações e condições de trabalho, muito ainda carece de ser realizado nos Juízos de 1ª instância, tanto na capital quanto nas comarcas do interior.

É principalmente na 1ª instância que se dá o contato direto do jurisdicionado com o Poder Judiciário. É lá que são produzidas as provas, as partes são ouvidas e as testemunhas são chamadas a cumprir seu dever de colaborar na procura da verdade. Em muitas comarcas, na capital inclusive, o atendimento ao jurisdicionado deixa a desejar. As partes e, é claro, seus advogados são obrigados a esperar a realização de audiências ¿ com freqüência marcadas para data distante ¿, sem o conforto de que são merecedores. Juízes são obrigados a acumular duas, três e, por vezes, até maior número de Varas. Perdem as partes, perdem os operadores do Direito e perdem os magistrados que são obrigados a sacrificar uma fundamentação mais consistente para suas decisões por ter que dar conta de volume quase desumano de trabalho.

O problema existe e dele não estamos apartados. O nosso desafio é encará-lo de frente e utilizar todos os meios que a moderna ciência nos proporciona. Os pontos de partida para qualquer solução serão sempre a identificação, o dimensionamento e a dissecação do problema, tal como ensina o grande filósofo René Descartes, no seu magistral Discurso do Método. Pretendemos fazer, no âmbito do Conselho da Magistratura, o exame cuidadoso de todas as nuances da questão para propor uma abordagem definitiva. Para tanto, a experiência acumulada pelo nosso centro de estudos e reciclagem, a Escola da Magistratura será o grande vetor de aprimoramento do magistrado com especial ênfase na deontologia da função. Dentro do processo da inexorável democratização por que passa o Poder Judiciário, segmentos diretamente interessados, até por chamamento constitucional, como advogados e membros do Ministério Público, da Defensoria Pública e das Procuradorias do Estado e dos Municípios, serão conclamados a prestar sua colaboração. A tarefa de redesenhar a 1ª. instância não é obrigação apenas da Direção que ora se empossa. É um compromisso de todos nós para com a sociedade. O Judiciário fluminense está consciente dessa responsabilidade e saberá corresponder à confiança que merece da comunidade forense e da população.

O terceiro ponto concerne aos objetivos. Toda organização precisa ter objetivos comuns, simples e claros, que tornem tangível a sua missão. Se a missão do Poder Judiciário é a de resolver conflitos de interesses em tempo adequado à natureza de cada qual, os seus objetivos, do ponto de vista da gestão, devem ser, em síntese, os de prover cada órgão jurisdicional de condições adequadas à realização dessa missão. Condições de instalações físicas, de equipamentos e serviços de toda sorte necessários à entrega expedita e qualificada da prestação jurisdicional, que as sucessivas gestões vencedoras de nosso tribunal já nos propiciaram. Já obtivemos os hardware, agora temos que buscar aperfeiçoar estes meios físicos com os software e a gestão de pessoas.

Por efeito, desse terceiro ponto, o Plano de Ação Governamental do Poder Judiciário deste Estado para o biênio 2007-2008, estará discriminando programas e projetos, com objetivos e metas factíveis dentro das disponibilidades orçamentárias, que são razoáveis, e segundo prioridades que levem em conta os pontos fracos de nosso desempenho, não aqueles que já se mostrem satisfatórios. Em outras palavras, o PAG do biênio que hoje começa privilegiará a prestação jurisdicional de primeiro grau, ainda carente de melhor suporte. Nada obstante os investimentos que lhe têm sido destinados, o primeiro grau ainda permanece pressionado por demanda crescente por mais e melhores serviços, sobretudo nos Juizados Especiais. Já se dispõe de modelos de gestão de Juizados Especiais Cíveis e Criminais naqueles que obtiveram a certificação ISO 9001 e têm sido considerados exemplares por quantos ali postulam. É necessário, no entanto, multiplicar os modelos, a custos condizentes, para os demais Juizados. Modelos certificados de gestão também já temos de Vara Cível, de Vara de Família e de Vara Criminal. Serão igualmente multiplicados para as suas congêneres em todo o Estado.

A tendência é a de reduzir-se a atividade de certificação e de elevar-se a atividade de multiplicação dos modelos já certificados, com nosso próprio pessoal, que vem sendo treinado para tal finalidade. Esse é um dos principais objetivos da Diretoria Geral de Desenvolvimento Institucional.

O quarto ponto de nossa pauta funda-se no reconhecimento de ser toda organização composta por pessoas com diferentes habilidades e conhecimentos, que desempenham diferentes tipos de tarefas. Por isto, cada membro da organização precisa refletir sobre o que pretende realizar e assegurar-se de que todas as pessoas com as quais trabalha, sabem e compreendem esse objetivo. Em outras palavras, deve haver comunicação interna. A missão do Poder Judiciário, os valores que a animam, os objetivos e metas que a concretizam devem pulsar no dia-a-dia da instituição. Informações distorcidas, dados sonegados, diretrizes secretas em nada contribuem para um ambiente de trabalho saudável e comprometido com a missão. A comunicação com o público externo é certamente importante para a imagem do Poder e por isso será tratada com a atenção necessária à permanente interlocução com os destinatários de nossa atuação, mas a comunicação com o público interno é essencial para a eficiência e a eficácia com que o Poder desempenha a sua missão. Veículos de comunicação interna, sérios e conseqüentes, devem ser estimulados, assim como os gestores, em todos os níveis, devem cultivar a clareza e a lealdade no trato entre si e com os servidores. A Casa da Justiça não deve ser, definitivamente, cenário para disfarces, intrigas e disputas personalistas. O princípio da transparência deve ocupar lugar de destaque em nosso cotidiano.

Meus eminentes pares e queridíssimos amigos, aqui reunidos nesta solenidade tão cara a meu coração: quando, então passados trinta e sete anos, um outro José Carlos Schmidt Murta Ribeiro se torna Presidente deste Tribunal de Justiça, fato inédito na nossa história. Estejam vós certos de que não me afastarei um milímetro da plataforma que apresentei: Ética, Competência, Participação, Transparência e Efetividade. E, como pessoa simples que sou ¿ um ser intrinsecamente juiz ¿, juiz por vocação, com clara compreensão sobre a índole humanista do problema social, vivendo e convivendo, em corpo e alma, para compartilhar razão e sentimento, tudo farei para bem administrar nosso Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro.

Assim, procurarei dar continuidade às pré-faladas gestões vencedoras que temos tido e que nos colocaram como paradigma para os outros Tribunais de Justiça do país, graças às competentes administrações de nossos últimos Presidentes, todos, sem exceção, e que elevaram os padrões de credibilidade e competência de nossos julgados em tempo hábil. O Presidente Sergio Cavalieri Filho, trabalhador incansável e gestor competente, nos lega, sem dúvida, um Tribunal atuante e célere, dotado com os meios físicos e materiais modernos que nos permitem progresso com eficácia e eficiência. Em continuidade deste trabalho, procurarei prestigiar os servidores de carreira, aos quais estimularei na condução de um choque de gestão com as pessoas, ou seja, administração participativa.

O quinto e último ponto concerne à produtividade.

Quanto a este ponto, valendo-nos da lição sempre oportuna de Peter Drucker, podemos afirmar que: onze em cada dez profissionais de administração consideram que o maior desafio que enfrentam os gestores (..) é aumentar a produtividade dos prestadores de serviços e trabalhadores do conhecimento (...). A menos que esse desafio seja vencido, enfrentaremos crescentes tensões sociais, polarizações, radicalizações e até mesmo uma luta de classes. Onze em cada dez analistas da administração judiciária consideram que o principal problema da prestação jurisdicional, como percebido pelos cidadãos, é a morosidade. Logo, aumentar a produtividade dos juízes seria o maior desafio da gestão do Poder Judiciário, seguindo-se que, elevada que fosse a produtividade, o problema da morosidade se resolveria por conseqüência.

Tal diagnóstico padece do mesmo defeito de todo reducionismo: embaça a visão completa da realidade e tende a simplificar o que é complexo por natureza e definição. Para conhecer a capacidade de produzir dos juízes, com os meios existentes ou mobilizáveis, a estatística das decisões que proferem a cada mês é importante, mas é apenas um primeiro passo.

Os juízes, como profissionais do conhecimento e mentores da paz social, procuram o valor do justo. No trabalho do conhecimento, a definição da tarefa e a eliminação de etapas desnecessárias são ainda mais prementes e geram resultados ainda maiores. Pense-se no número de tarefas e de atos desnecessários que integram o processo judicial e as atividades dos cartórios que dão suporte ao trabalho dos juízes, e aí se encontrará um sem-número de rotinas que deles subtraem, em todos os graus de jurisdição, tempo precioso para tomar as decisões que as partes em litígio aguardam.

Cada magistrado e cada servidor devem conhecer bem o que fazem - a lógica, o ritmo, a qualidade e os instrumentos de seu trabalho. Perguntar-lhes o que pensam, ajuda a equacionar a questão da produtividade e da qualidade. Hoje, embora ainda longe de ser praticado em larga escala, está consagrado o princípio de que o conhecimento dos trabalhadores quanto às suas funções é o ponto de partida para o aumento de produtividade, qualidade e desempenho. No trabalho do conhecimento e na prestação de serviços, a parceria com o trabalhador responsável é o único meio de elevar-se a produtividade. Nos trabalhos judiciários, a produtividade é o segredo da estabilidade social e até mesmo de uma mudança social condicionada pela efetivação dos parâmetros constitucionais relativos aos direitos fundamentais. Aqui se risca a fronteira entre a modernidade e a pós-modernidade: naquela, proclamam-se os direitos fundamentais; nesta, cuida-se de assegurá-los concretamente para todos.

É fundamental e inarredável o comportamento ético, a permear todos os segmentos da Administração. A conduta ética obriga que se recuse a mínima possibilidade de espaço para a atuação de magistrados sem tal compromisso. A ética, que compele à ação, combate qualquer foco de corrupção. Causa-lhe repugnância a simples referência a figuras incompatíveis com a magistratura, tal como a do chamado "juiz empresário", que se alinharia aos interesses dos poderosos. O juiz o é de todos e para todos deve atuar com justiça. 

Está mais do que na hora de os gestores do Poder Judiciário, os Juízes, os integrantes das funções essenciais e os servidores da Justiça tornarem-se parceiros no diálogo que conduzirá ao estabelecimento de processos de trabalho inteligentes, que efetivamente elevem a produtividade em termos de quantidade e qualidade, para o que é essencial dispor de pessoas qualificadas e comprometidas com a missão, bem treinadas, bem instaladas, motivadas e se comunicando entre si quanto a problemas comuns. Do contrário, tudo não passará de estatística a encobrir sacrifício frustrado por descaso e perda de qualidade.

Peter Drucker, o gênio da ciência da administração no último meio século, recentemente falecido aos 95 anos, deixou, entre outras, uma lição imorredoura: ... não existem resultados dentro das paredes de uma organização. O resultado de um negócio é um cliente satisfeito. O resultado de um hospital é um paciente curado. O resultado de uma escola é um aluno que aprende alguma coisa e a coloca em prática dez anos mais tarde. Dentro de uma empresa, há apenas centros de custo. Os resultados só existem fora dela. (A Administração e o Trabalho no Mundo, in Drucker ¿ O homem que inventoua Administração, pág. 198-199. Ed. Elsevier, 2006).

Os resultados que a organização judiciária precisa obter não estarão dentro das paredes do Tribunal, mas na certeza de que nós  juízes, seremos sim, capazes de transmitir aos jurisdicionados que as nossas decisões são independentes, abstraída a figura de quem seja o vencedor ou o vencido na demanda, rico ou pobre, poderoso ou cidadão comum. Por outro lado, que nossas decisões sejam proferidas em tempo razoável, com isenção, zelo, conhecimento e espírito de justiça. Que assim permaneça por todos os biênios.

Ao terminar esta alocução, que já vai longa, não podia deixar de mencionar os agradecimentos finais à minha família, núcleo de onde auri toda a minha identidade pessoal. Falo de meus queridos pais, José Murta Ribeiro e Lucy Martins Schmidt Murta Ribeiro, que me ensinaram o caminho de uma vida reta, sem prejudicar a quem quer que seja. Do meu pai, ex-presidente desta Casa, disse, certa feita ao ofertar minha dissertação de mestrado na nossa Universidade Gama Filho, que ele era o meu mestre, mas não só mestre nas ciências jurídicas, mas um mestre de vida, vida onde o maior patrimônio é o honeste vivere neminem laedere suum cuique tribuere. Agradeço, por igual, à minha mulher Carol, pessoa especial que, nesses trinta e sete anos de vida em comum foi, sem sombra de dúvida, a companheira ideal que alguém possa querer. Possui ela o dom da música, privilegiando, com a suavidade transmitida pelo encantamento emanado das teclas de seu piano, não só a mim, mas a nossos familiares e amigos, permitindo a tranqüilidade de que um Juiz, só Juiz a vida toda, precisa para decidir as controvérsias postas nas questões judiciais. Às vezes, quando a ouço, recordo-me de uma lição legada pelo grande vulto libertário Mahatma Gandhi:

A vida é maior do que toda a arte. Vou além e declaro que o homem cuja vida mais se aproxima da perfeição é o maior artista. Afinal, o que é a arte sem a fundação segura e a estrutura de uma vida nobre?

E minha felicidade se completa quando concluo que, em Carol, se unem, de forma indissolúvel, a sensibilidade da artista com a coragem e a solidez de caráter, que fazem de seu amor uma fortaleza de estímulo e de infusão de ânimo. Infusão de ânimo para tocar a vida junto com nossos filhos José Murta Neto, Leonardo Schindler Murta Ribeiro Paula Calainho Murta Ribeiro, sua esposa, e agora também com as nossas netinhas Giulia e Giovanna.

Que Deus nos ilumine e inspire nessa desafiante e comovedora caminhada. Muito obrigado.

Agora ao trabalho."

Fonte: Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro, Seção I, Parte III, p. 24 e 25, em 15 de fevereiro de 2007.